Nos Passos de Anchieta


"Aqui fizemos uma casinha pequena de palha, e a porta estreita de cana. As camas são redes que os índios costuram; os cobertores, o fogo, para o qual, acabada a lição à tarde, vamos buscar lenha no mato e a trazemos às costas, para passarmos a noite. A roupa é pouca e pobre, sem meias ou sapato, de pano de algodão... A comida vem dos índios, que nos dão alguma esmola de farinha e algumas vezes, mas raramente, alguns peixinhos do rio e mais raramente ainda, alguma caça do mato."
Trecho de carta de Anchieta a Inácio de Loyola -1554.



O litoral capixaba sempre foi familiar pra mim. Natural de Juiz de Fora sempre frequentei as praias do Espírito Santo durante as férias escolares. Fui ao museu em Anchieta na companhia erudita de minha avó Maria Helena Coutinho Guedes o que multiplicou a magia daquele lugar. Ruínas ao fundo da construção, amostras das escavações, obras sacras, adereços indígenas e um osso, pra ser mais exato o fêmur do próprio Padre Anchieta compunham o acervo do museu. Estes elementos somados com a fértil imaginação infantil foram elementos fantásticos para mim e resultaram em mil aventuras.

Sai de lá com uma medalha do espírito santo em forma de pomba no pescoço e uma biografia intitulada: "Vida Ilustrada do V. P. Anchieta, apóstolo do Brasil" com ilustrações de D. Mastrolanni que devorei ávidamente. A imagem que mais me cativou foi a do padre na praia escrevendo seus poemas na areia tendo por únicas testemunhas as gaivotas. Não me importava a verácidade histórica desta imagem apenas seu romantismo inspirador. No entanto, sua biografia possui elementos tão extraordinários que poderiam compor qualquer romance de literatura fantástica. Ele participou da gênese de nosso país. Na catequese, usava o teatro e a poesia, tornando a aprendizagem um processo prazeroso. Ensinou latim aos índios, aprendeu tupi-guarani com eles e (seguindo a tradição missionária, que mandava assimilar e registrar os idiomas) escreveu a "Arte da Gramática da Língua Mais Falada na Costa do Brasil", publicada em Coimbra em 1595.
O colégio de São Paulo de Piratininga, como era chamado, logo expandiu seu núcleo. Mas, ao longo do litoral de São Paulo, Rio de Janeiro e Espírito Santo, as tribos formaram uma aliança (conhecida como Confederação dos Tamoios) que atacou São Paulo diversas vezes entre 1562 e 1564.

Anchieta e Nóbrega tiveram um conflito com Duarte da Costa e decidiram iniciar as negociações de paz com os tamoios em Iperoig (hoje Ubatuba). Anchieta, falando tupi-guarani e viajando por toda aquela costa, foi crucial para ganhar a confiança dos índios, e, após muitos incidentes, estabeleceu-se a paz entre tamoios, tupinambás e portugueses. Nessa época, Anchieta escreveu o "Poema em Louvor à Virgem Maria", com 5.732 versos, alguns dos quais traçados nas areias das praias.

Em 1565, entrou com Estácio de Sá na baía de Guanabara, onde estabeleceram os fundamentos do que viria a ser a cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro. Dali, Anchieta seguiu para Salvador, onde foi ordenado sacerdote. Por ocasião dessa viagem, novamente pisou em terras capixabas. Em 1567, voltou para o Rio e para São Vicente. Nessa última, permaneceu dez anos, quando foi nomeado provincial (supervisor) dos jesuítas no Brasil.

Em 1585, fundou a aldeia de Guaraparim (hoje Guarapari), no Espírito Santo. Morreu aos 63 anos em Reritiba, atual Anchieta. Os índios levaram seu corpo numa viagem de 80 quilômetros até Vitória, onde foi sepultado.

Nada mais natural que, ao retomar meu espírito de aventura, em 2008 eu me aventurasse por aquelas praias que me encantaram enquanto criança.

O caminho reconstitui a trilha de 105 quilômetros percorrida quinzenalmente pelo Padre Anchieta nos seus deslocamentos da Vila de Rerigtiba , atual cidade de Anchieta, à Vila de Nossa Senhora da Vitória onde cuidava do Colégio de São Tiago. Este personagem histórico, digno de qualquer romance fantástico recolheu-se à vila indígena nas costas do Espírito Santo que tanto lhe evocava a sua San Cristoban de Laguna, em Tenerife, nas Ilhas Canárias, onde nasceu.

A reconstituição do trajeto baseou-se na praticidade de que os jesuítas, pioneiros em diversos pontos do território brasileiro, se notabilizavam como andarilhos cobrindo longas distâncias pelas praias, valendo-se principalmente das marés vazantes, quando a areia solada oferecia menor dificuldade para caminhar.

Anchieta foi um peregrino nato. Caminhou bastante pelas regiões que hoje correspondem aos estados do Rio de Janeiro e Espírito Santo, sobretudo pelo litoral. No ano de 1567, Anchieta alcançou o cargo de Provincial, o mais alto posto da Ordem de Jesus após a morte do Padre Manuel da Nóbrega. A partir de então, o padre José de Anchieta andou por toda extensão do território colonial orientando as atividades das várias missões jesuítas espalhadas pelo Brasil.